Tem-se observado, muito acertadamente, diga-se de passagem, várias decisões
da Justiça Federal, em todo o país, concedendo ingresso ao Fies, apesar do estudante
não ter atingido a Nota de Corte, seja aquela do ENEM, ou ainda, a “nota igual ou
superior àquela obtida pelo último estudante selecionado para as vagas do
Financiamento Estudantil na Instituição de Ensino Superior de destino.”.
O direito à educação, inclusive à de nível superior, trata-se de uma garantia
constitucional, segundo se observa dos artigos 6º; 205; e 208, V, todos da Constituição
Federal de 1988.
Estamos falando, portanto, de um Direito Constitucional Social, a educação, em
todos os seus níveis, consagrado com a promulgação da Carta Magna em outubro de
1988, e que nesta ordem de ideia, não pode sofrer qualquer tipo de retrocesso, por conta
do Princípio Constitucional do Entrincheiramento [entrenchment].
“O entrenchment do núcleo basilar dos direitos sociais funciona como uma garantia à
efetivação dessas prerrogativas, impedindo um retrocesso em sua concretização e,
consequentemente, aumentando o nível de densidade da Lex Mater. O entrincheiramento,
como o étimo da palavra já clarifica, configura-se no encastelamento da eficácia suficiente
dos direitos sociais dentro do ordenamento jurídico, solidificando este conteúdo no tecido
coletivo. Seu escopo é fortalecer a densidade normativa desses direitos, funcionando
também como elemento catalisador de legitimidade ao Estado Democrático Social de
Direito, realizando o que Canotilho chamou de solidificação da legalidade democrática.
A finalidade do entrenchment é garantir eficácia ao ordenamento jurídico, dotando-o de
segurança jurídica, o que faz com que as normas deixem de ter um papel retórico e possam
ter uma concretude prática. Como as normas são cada vez mais principiológicas, a
determinação de seu conteúdo eliminaria a insegurança do sistema e igualmente evitaria a
proliferação de antinomias.
A concepção de entrincheiramento ou proibição do retrocesso assegura uma proteção ao
conteúdo dos direitos humanos em geral, mantendo um nível base de determinada
concretude normativa. Contudo, o entrenchment não impede a evolução dos direitos, depois
de garantir uma intensidade suficiente, reforçando sua legitimidade na sociedade, a
finalidade configura-se em expandir o entrincheiramento mais adiante, propiciando maiores
prerrogativas à população.” (Walber de Moura Braga, na obra Tratado de Direito
Constitucional, Editora Saraiva, edição 2010, Vol. I, p. 541, coordenada por Ives Gandra da
Silva Martins, Gilmar Ferreira Mendes, e Carlos Valder do Nascimento)
Pois, atendendo ao Direito Constitucional Social à educação, foi editada a Lei
Federal nº 10.260/2011 [com atual redação pela Lei Federal nº 12.513/2011], que NÃO
EXIGE nota de desempenho mínima para a concessão do Fies.
No entanto, o Ministério da Educação – MEC, por meio de reiteradas Portarias
[mero ato administrativo sem força de Lei], passou a exigir uma “nova” exigência para
ingresso no Fies, ligada à malsinada nota mínima de desempenho.
No nosso modesto entendimento, o requisito da nota mínima de desempenho,
estipulada pelo MEC, através de Portarias, viola de forma clara e inequívoca, dentre
outros Princípios e Normas Constitucionais, o Princípio da Legalidade, insculpido no
art. 5º, II, CF/88, à medida que a Lei nº 12.260/2001, não impõe a famigerada nota de
corte.
Com efeito, as Portarias do MEC em questão, impõem restrições que não
contam da Lei que rege o Fies.
A Lei nº 12.260/2001, portanto, deve prevalecer sobre as Portarias do MEC,
naquilo a que se refere às nefastas notas de corte, haja vista tratar-se de uma norma
hierarquicamente superior.
Portaria Ministerial, é um ato administrativo, não incluído no conceito de Lei
Federal, e desta forma, não pode sobrepor-se à LEI, isso, por conta do Princípio da
Hierarquia das Leis, devendo prevalecer as disposições da Lei n. 10.260/2001, que não
exige desempenho mínimo para concessão do Fies.
Somente uma outra Lei Federal, é esse o nosso entendimento, poderia
estabelecer o regramento de nota mínima para obtenção do Fies.
Que não se olvide sobre a Lei ter autorizado ao MEC editar regras para o acesso
ao Fies, desde que, evidentemente, não se sobreponha aos ditames da Lei 10.260/2001,
com a redação dada pela Lei 12.513/2011.
Com efeito, e sem medo de errar, as Portarias do MEC, nitidamente, ao
estabelecerem uma condicionante [exigência] não prevista no comando legal em foco,
qual seja, “nota igual ou superior àquela obtida pelo último estudante selecionado para
as vagas do Financiamento Estudantil na Instituição de Ensino Superior de destino.”, se
sobrepõem, de todo indevido, à Lei 10.260/2001
O Princípio da Legalidade não admite que se imponham restrições a particulares,
sem que haja a devida previsão legal. Daí resulta que a restrição veiculada em ato
administrativo [Portarias Normativas do MEC] não pode prevalecer sobre a intenção do
legislador.
É ilegal, portanto, a vedação veiculada nas mencionadas Portarias, uma vez que
referidos atos administrativos ampliam as restrições ao financiamento estudantil,
previstas na Lei nº 10.260/2001.
Como dissemos linhas acima, o direito à educação é uma garantia constitucional
[art. 6º da CF/88], e, pelo Princípio do Não Retrocesso Social, incabível reduzir-se
direitos sociais previstos na Constituição da República e em Lei Federal, por meio de
Portarias do Ministério da Educação.
Art. 6 – São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição.
A educação é o DIREITO de qualquer cidadão, é um DEVER do Estado,
segundo preconiza o art. 205 da Constituição Federal.
Art. 205 – A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.
As abusivas Portarias do MEC, ao ampliarem restrições de acesso ao Fies, que
não constam da Lei nº 10.260/2001, invariavelmente, cometem um retrocesso social,
lembro, vedado pelo Princípio Constitucional do Entrincheiramento.
Segundo o Ministro [aposentado] Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal,
no julgamento da ADIN 3.128 – DF, assim ponderou:
“(…) a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no
processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa
pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional, impedindo, em
consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas,
uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto nas
hipóteses – de todo inocorrente na espécie – em que políticas
compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias
governamentais.”
As Portaria do MEC, ao exigirem a nota mínima de desempenho, representam
um retrocesso social ímpar, porquanto, ao arrepio dos artigos 6º, 205, e 208, V, todos da
CF/88, cuidou de delimitar o acesso ao financiamento estudantil ao exigir desempenho
mínimo para concessão do Fies, impondo, de todo indevido, restrições que não constam
na Lei nº 10.260/2001, LEI FEDERAL ORDINÁRIA, impossibilitando ou
discriminando quais estudantes têm ou não direito a pleitear o financiamento estudantil.
Há de se prestigiar o Princípio da Legalidade [art. 5º, II, da CF/88], que traz a
impossibilidade de o Poder Executivo mitigar a garantia de acesso ao Fies, estipulando
restrições no acesso ao programa, através da edição de toda sorte de Portarias, em
manifesta subversão das atribuições do Poder Legislativo.
Se a Lei não é boa, se não mais atende aos reclames sociais, é tarefa do
legislador ordinário, a sua reforma ou mesmo revogação, não cabendo ao Poder
Executivo, por gambiarras administrativas [Portarias, Instruções Normativas, Ordens de
Serviço e etc.], tal indevida iniciativa, sob pena da quebra da divisão dos poderes da
república [art. 2º da CRFB].
Em nosso país, apenas a LEI, em seu sentido formal, é apta a inovar,
originariamente, na ordem jurídica. Logo, não é possível pensar em direitos e deveres
subjetivos sem que, contudo, seja estipulado por Lei. É a submissão e o respeito à LEI.
O império e a submissão ao Princípio da Legalidade conduzem a uma situação
de segurança jurídica, em virtude da aplicação precisa e exata da lei preestabelecida.
Complementando o raciocínio, o insigne doutrinador Celso Ribeiro Bastos
leciona que “o princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia
constitucional do que de um direito individual, já que ele não tutela, especificamente,
um bem da vida, mas assegura, ao particular, a prerrogativa de repelir as injunções
que lhe sejam impostas por uma outra via que não seja a da lei”.
O Ministro Alexandre de Moraes, na obra Direito Constitucional, 32ª edição,
Editora Atlas, p. 106, preleciona que esse princípio [o da Legalidade] objetiva combater
o poder injusto do Estado, dizendo que o povo só está obrigado pela lei, e esta deve ser
devidamente elaborada pelo processo legislativo constitucional.
O que a Lei não restringe, não pode fazer o Poder Executivo, in casu, por meio
de edição de Portarias – atos administrativos.
O Ministro Luís Roberto Barroso, na sua obra, Curso de Direito Constitucional
Contemporâneo, editora Saraiva, 09ª edição, em p. 196, traz uma brilhante lição sobre o
Princípio da Supremacia da Constituição e da Interpretação Conforme, verbis:
“4.1 PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO
O poder constituinte cria ou refunda o Estado, por meio de uma Constituição.
Com a promulgação da Constituição, a soberania popular se converte em
supremacia constitucional. Do ponto de vista jurídico, este é o principal traço
distintivo da Constituição: sua posição hierárquica superior às demais normas
do sistema. A Constituição é dotada de supremacia e prevalece sobre o
processo político majoritário – isto é, sobre a vontade do poder constituído e
sobre as leis em geral – porque fruto de uma manifestação especial da
vontade popular, em uma conjuntura própria, em um momento constitucional
(v. supra). A supremacia da Constituição é um dos pilares do modelo
constitucional contemporâneo, que se tornou dominante em relação ao
modelo de supremacia do Parlamento, residualmente praticado em alguns
Estados democráticos, como o Reino Unido e a Nova Zelândia. Note-se que o
princípio não tem um conteúdo material próprio: ele apenas impõe a primazia
da norma constitucional, qualquer que seja ela.
Como consequência do princípio da supremacia constitucional, nenhuma lei
ou ato normativo – a rigor, nenhum ato jurídico – poderá subsistir
validamente se for incompatível com a Constituição. Para assegurar essa
superioridade, a ordem jurídica concebeu um conjunto de mecanismos
destinados a invalidar e/ou paralisar a eficácia dos atos que contravenham a
Constituição, conhecidos como controle de constitucionalidade. Assim,
associado à superlegalidade da Carta Constitucional, existe um sistema de
fiscalização judicial da validade das leis e atos normativos em geral.”
O direito à educação em nível superior encontra-se devidamente
constitucionalizado [art. 208, V, todos da Carta Política de 1988].
Art. 208 – O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a
garantia de:
(…)
V – acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação
artística, segundo a capacidade de cada um;
O direito à educação, como direito social e fundamental, é um direito humano, e
encontra-se englobado no direito à dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1º,
III, da CF/88.
Por todo o exposto até aqui, tem-se sólidos argumentos no sentido de impor a
nulidade das Portarias do MEC, ao exigirem a note de corte, para ingresso no Fies,
porquanto investem contra o Princípio Constitucional da Legalidade; o Princípio da
Supremacia da Constituição; o Princípio Constitucional do Não Retrocesso Social, além
de agredir o art. 1º, III; 6º, 205; e 208, V, todos CF/88, e assim, conferir ao estudante o
direito de obter o FIES independentemente da nota obtida na Instituição de Ensino
Superior de destino, desde que sua condição sócio econômica atenda aos requisitos da
Lei 10.260/2011, na sua atual redação.
A título de informação, transcrevo abaixo, decisão proclamada no Agravo de
Instrumento nº 1011718-06.2023.4.01.0000, proferida pelo Desembargador Federal
Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da 01ª Região, em março de 2023, que
corrobora as exposições supra, verbis:
“DECISÃO
Cuida-se de agravo de instrumento interposto contra decisão proferida nos autos de
demanda, em que se busca a concessão de provimento judicial, no sentido de que
seja assegurado à parte suplicante o direito ao financiamento estudantil, com
recursos do Fundo de Financiamento Estudantil – FIES, independentemente das
restrições impostas pelo Ministério da Educação, no ponto em que inibem a
participação de estudantes no aludido Programa, segundo a nota por eles obtida no
Exame Nacional de Cursos – ENEM.
O juízo monocrático indeferiu o pedido de antecipação da tutela formulado no feito
de origem, sob o fundamento de que a suplicante não preencheria os requisitos
previstos nos atos normativos de regência, para essa finalidade.
Em suas razões recursais, insiste o recorrente na concessão da almejada antecipação
da tutela mandamental postulada nos autos de origem.
Não obstante os fundamentos em que se amparou a decisão agravada, vejo
presentes, na espécie, os pressupostos do art. 1019, I, do CPC, a ensejar a concessão
da almejada antecipação da tutela recursal, notadamente em face do seu caráter
manifestamente precautivo e, por isso, compatível com a tutela cautelar do agravo,
manifestada nas letras e na inteligência do referido dispositivo legal, de forma a
possibilitar a formalização de novos contratos de financiamento estudantil e
assegurar, por conseguinte, o pleno acesso ao ensino superior, como garantia
fundamental assegurada em nossa Constituição Federal, na determinação cogente e
de eficácia imediata (CF, art. 5º, § 1º), no sentido de que “a educação, direito de
todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (CF, art. 205).
Ademais, impende consignar que o mencionado Fundo de Financiamento ao
Estudante do Ensino Superior – FIES foi criado pela Lei nº 10.260/2001,
posteriormente modificada, que, em seu art. 1º, assim estabelece:
Art.1º É instituído, nos termos desta Lei, o Fundo de Financiamento Estudantil
(Fies), de natureza contábil, vinculado ao Ministério da Educação, destinado à
concessão de financiamento a estudantes de cursos superiores, na modalidade
presencial ou a distância, não gratuitos e com avaliação positiva nos processos
conduzidos pelo Ministério, de acordo com regulamentação própria.
§ 1º O financiamento de que trata o caput deste artigo poderá beneficiar estudantes
matriculados em cursos da educação profissional, técnica e tecnológica, e em
programas de mestrado e doutorado com avaliação positiva, desde que haja
disponibilidade de recursos, nos termos do que for aprovado pelo Comitê Gestor do
Fundo de Financiamento Estudantil (CG-Fies) (…)
§ 6º O financiamento com recursos do Fies será destinado prioritariamente a
estudantes que não tenham concluído o ensino superior e não tenham sido
beneficiados pelo financiamento estudantil, vedada a concessão de novo
financiamento a estudante em período de utilização de financiamento pelo Fies ou
que não tenha quitado financiamento anterior pelo Fies ou pelo Programa de Crédito
Educativo, de que trata a Lei no 8.436, de 25 de junho de 1992.
Por sua vez, estabelece o art. 15-D, caput, da referida Lei, com a redação dada pela
Lei nº 13.530-2017, que “é instituído, nos termos desta Lei, o Programa de
Financiamento Estudantil, destinado à concessão de financiamento a estudantes em
cursos superiores não gratuitos, com avaliação positiva nos processos conduzidos
pelo Ministério da Educação, de acordo com regulamentação própria, e que também
tratará das faixas de renda abrangidas por essa modalidade do Fies”.
Da leitura dos dispositivos legais em referência, verifica-se que, efetivamente, não
se vislumbra, dentre as condições legalmente estabelecidas, a exigência de que o
aluno tenha sido submetido ao Exame Nacional de Ensino Médio – ENEM, nem,
tampouco, que tenha obtido a média mínima exigida nos atos normativos
hostilizados nos presentes autos.
É bem verdade que o art. 3º da referida Lei nº 10.260/2011, estabelece que a gestão
do FIES caberá ao Ministério da Educação, que editará regulamento dispondo sobre
“as regras de seleção de estudantes a serem financiados, devendo ser considerados a
renda familiar per capita, proporcional ao valor do encargo educacional do curso
pretendido, e outros requisitos, bem como as regras de oferta de vagas”.
De ver-se, porém, que, os tais “outros requisitos” a que se reporta o dispositivo legal
em referência, não podem extrapolar os limites estabelecidos pela própria Lei de
criação do FIES, como no caso, sob pena de violação ao princípio da legalidade,
segundo o qual, “ ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei” (CF, art. 5º, inciso II), mormente em face da finalidade
precípua do financiamento estudantil em referência, que consiste em propiciar, sem
qualquer limitação, o livre acesso ao ensino superior, sintonizando-se, com o
exercício do direito constitucional à educação (CF, art. 205) e com a expectativa de
futuro retorno intelectual em proveito da nação, que há de prevalecer sobre
formalismos eventualmente inibidores e desestimuladores do potencial científico daí
decorrente.
Com estas considerações, defiro o pedido de antecipação da tutela recursal
formulado na inicial, para assegurar à parte demandante o direito à formalização do
contrato de financiamento estudantil, com recursos do FIES, relativamente ao curso
superior descrito na inicial, junto à instituição onde fora aprovada em regular
processo seletivo, independentemente das restrições descritas nos autos, até o
pronunciamento definitivo da Turma julgadora.
Intimem-se as promovidas, com urgência, para fins de cumprimento desta decisão
mandamental, cada uma na sua esfera de competência, bem assim, para as
finalidades do art. 1.019, II, do CPC vigente, cientificando-se, também, ao juízo
monocrático, na dimensão eficacial do art. 1.008 do referido diploma legal.
Dê-se vistas, após, à douta Procuradoria Regional da República.
Publique-se. Intime-se.
Brasília-DF, em 29 de março de 2023.
Desembargador Federal SOUZA PRUDENTE”
Noutro rumo, mesmo que se admita que o ato administrativo [discricionário]
representado pela Portaria do MEC, possa estabelecer restrições [exigências] para o
acesso ao Fies, notadamente quanto ao assunto em destaque – nota mínima de
desempenho -, ele não se encontra imune ao Controle de Constitucionalidade, ao
contrário do que querem fazer crer algumas decisões judiciais, que defendem a
legalidade da famigerada nota de corte.
Há de ser observar o Devido Processo Legal Substantivo, “que diz respeito à
limitação ao exercício do poder legiferante, autorizando o Poder Judiciário a perquirir,
no exercício do controle de constitucionalidade dos atos normativos estatais, diante do
caso concreto, se a norma restritiva de direito ou garantia fundamental está em
consonância com o permissivo constitucional”, segundo leciona o festejado autor
Odilair Carvalho Júnior.
O inciso LIV do art. 5º da CF/88, autoriza o Estado-Juiz exercer o controle de
constitucionalidade sobre o ato normativo da administração pública, no caso, e por
exemplo, a Portaria MEC, que exige e nota de corte, para ingresso no Fies, mesmo à
despeito da sua discricionariedade.
Como dito alhures, as Portarias do MEC, ao criarem restrições no acesso ao
Fies, não prevista na Lei nº 10.260/2001, colide com vários Princípios e Normas
Constitucionais.
Dito tudo isso, as Portarias do MEC, mesmo em se tratando de atos
administrativos discricionários, encontram-se sujeitas ao Controle de
Constitucionalidade, dentro do que estabelece o art. 5, inc. LIV, da CF/88, que assegura
ao cidadão o Devido Processo Legal Substantivo.
Os Princípios Constitucionais da Proporcionalidade e o da Razoabilidade, dentre
outros, exercem importante papel no Controle da Constitucionalidade do ato
administrativo discricionário.
É correto afirmar que as Portaria do MEC, impondo regras de restrição ao Fies,
ligadas à nota de desempenho, não encontra ressonância nos Princípios Constitucionais
da Proporcionalidade e da Razoabilidade.
O princípio da razoabilidade é definido por Antônio José Calhau de Resende da
seguinte forma, verbis:
“A razoabilidade é um conceito jurídico indeterminado, elástico e variável no
tempo e no espaço. Consiste em agir com bom senso, prudência, moderação,
tomar atitudes adequadas e coerentes, levando- se em conta a relação de
proporcionalidade entre os meios empregados e finalidade a ser alcançada,
bem como as circunstâncias que envolvem prática do ato.” (O princípio da
Razoabilidade dos Atos do Poder Público. Revista do Legislativo. Abril,
2009).
Acerca do Princípio da razoabilidade, merece destaque a lição do ilustre
doutrinador administrativista Celso Antônio Bandeira de Mello no seu “Curso de
Direito Administrativo”, verbis:
“Enuncia-se com este princípio que a Administração, ao atuar no exercício de
discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional,
em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das
finalidades que presidiram a outorga da competência exercida. Vale dizer:
pretende-se colocar em claro que não serão apenas inconvenientes, mas
também ilegítimas – e, portanto, jurisdicionalmente invalidáveis -, as
condutas desarrazoadas e bizarras, incoerentes ou praticadas com
desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem
tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento
às finalidades da lei atributiva da discrição manejada.
Com efeito, o fato de a lei conferir ao administrador certa liberdade (margem
de discrição) significa que lhe deferiu o encargo de adotar, ante a diversidade
de situações a serem enfrentadas, a providência mais adequada a cada qual
delas. Não significa, como é evidente, que lhe haja outorgado o poder de agir
ao sabor exclusivo de seu líbio, de seus humores, paixões pessoais,
excentricidades ou critérios personalíssimos, e muito menos significa, muito
menos significa que liberou a Administração para manipular a regra de
Direito de maneira a sacar dela efeitos não pretendidos nem assumidos pela
lei aplicada. Em outras palavras: ninguém poderia aceitar como critério
exegético de uma lei que esta sufrague as providências insensatas que o
administrador queira tomar; é dizer, que avalize previamente as condutas
desarrazoadas, pois isto corresponderia irrogar dislates à própria regra de
Direito.”
Sobre os Princípios da Razoabilidade e Proporcionalidade, Ronny Charles nos
esclarece que “tais princípios possuem funções axiológicas e teleológicas essenciais,
permitindo o controle dos atos administrativos.”.
O referido autor prossegue com a explicação, pontuando o seguinte, sobre o
Princípio da Proporcionalidade, verbis:
“A exigência de razoabilidade traduz limitação material à ação da
Administração Pública. Como destacou o STF, o exame da adequação de
determinado ato estatal ao princípio da proporcionalidade, exatamente por
viabilizar o controle de sua razoabilidade, inclui-se no âmbito da própria
fiscalização de constitucionalidade das ações emanadas do Poder Público.
Sob esse aspecto, o princípio da proporcionalidade é essencial ao Estado
Democrático de Direito, servindo como instrumento de tutela das liberdades
fundamentais, proibindo o excesso e vedando o arbítrio do Poder, enfim,
atuando como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade
material dos atos estatais (STF HC 103529- MC/SP. Informativo 585).”
O Ministro Luís Roberto Barroso, na sua obra, Curso de Direito Constitucional
Contemporâneo, editora Saraiva, 09ª edição, em p. 295/296, traz uma brilhante lição
sobre o Princípio Constitucional da Razoabilidade-Proporcionalidade, verbis:
“4.5 PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE OU DA
PROPORCIONALIDADE
O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade já foi objeto de análise
no tópico dedicado à construção do pós-positivismo (v. supra) e voltará a ser
tratado mais à frente, no tópico dedicado à aplicação prática dos princípios.
Sua recorrência no presente trabalho apenas revela a importância que tal
princípio assumiu na dogmática jurídica contemporânea, tanto por sua
dimensão instrumental quanto material. Apenas para que não se deixe de
registrar sua importância como princípio específico de interpretação
constitucional, faz-se a breve anotação abaixo.
O princípio da razoabilidade-proporcionalidade, termos aqui empregados de
modo fungível, não está expresso na Constituição, mas tem seu fundamento
nas ideias de devido processo legal substantivo e na de justiça.
Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e
do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do
Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser
interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional
nela embutido ou decorrente do sistema. Em resumo sumário, o princípio da
razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou
administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o
instrumento empregado (adequação); b) a medida não seja exigível ou
necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo
resultado (necessidade/vedação do excesso); c) os custos superem os
benefícios, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que
aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). O princípio pode
operar, também, no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma,
em determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza um
resultado indesejado pelo sistema, fazendo assim a justiça do caso concreto.”
Pois bem…
Considerando o direito constitucional à educação, como sendo um direito social
[artigos 6º e 205 da CF/88];
Considerando o direito constitucional ao ensino superior, também um direito
social [art. 208, V, da CF/88];
Considerando o Princípio Constitucional do Não Retrocesso Social;
Considerando o objetivo da Lei 10.260/2001;
As malfadadas Portarias do MEC, ao imporem nota mínima de desempenho para
acesso ao Fies, não atendem aos Princípios Constitucionais da Razoabilidade e
Proporcionalidade.
As várias Portarias do MEC, ainda dentro do Controle de Constitucionalidade do
ato administrativo [Razoabilidade e Proporcionalidade], implica em manifesto excesso
de exigências na obtenção do Fies, ao passo que a Lei 10.260/2001, em seu bojo, fixa os
requisitos para o pleno acesso ao financiamento estudantil.
Já finalizando este material, a Constituição Federal de 1988 assegura o princípio
da igualdade, que implica tratar de forma igualitária todos os cidadãos. Exigir uma nota
mínima para o acesso ao FIES pode ser interpretado como uma discriminação, uma vez
que estabelece um critério que pode excluir estudantes que possuem potencial
acadêmico, mas que não atingiram determinada pontuação.
Acresço que a imposição de uma nota mínima pode criar barreiras
desnecessárias, prejudicando o acesso de estudantes de baixa renda que, de outra forma,
não teriam condições de custear seus estudos.
Cada estudante tem suas particularidades e enfrenta diferentes desafios ao longo
da vida acadêmica. A exigência de nota mínima pode não levar em consideração
questões como diferenças nas condições de ensino nas escolas públicas e privadas,
desigualdades socioeconômicas, entre outros fatores que podem impactar o desempenho
dos alunos.
Em vez de focar exclusivamente nas notas, o programa poderia considerar
critérios mais abrangentes, como a situação socioeconômica do estudante, a qualidade
da instituição de ensino, a conclusão do ensino médio, entre outros aspectos que
influenciam no desempenho acadêmico.
Por fim, cabe o alerta de que a matéria tratada neste modesto material, havendo
muitos julgados que comungam do entendimento aqui lavrado, e outros tantos
desfavoráveis, e ainda está muito longe de ser pacificada, havendo real e concreta
probabilidade de êxito na sua judicialização pelo estudante indevidamente preterido no
programa de acesso ao financiamento estudantil, por não ter atingido a nota de corte
fixada pelo MEC, através de Portarias.
É como penso!
Leonardo Garcia de Mattos [OAB/RJ 84.303]
Advogado Sênior e Sócio da LGM Advocacia & Consultoria Jurídica